O anarquismo foi, sem sombra de dúvida, a corrente de maior influencia sobre os trabalhadores no começo do século [XX]. Hoje, vemos uma certa redescoberta das idéias anarquistas, tanto por setores da intelectualidade como entre a juventude. Como você interpreta este fenômeno?
Penso que, na realidade, há um renascer do anarquismo, bem mais intenso do que a primeira vista possa parecer. Em nosso país, como em outros da América Latina, egressos de ditaduras militares, a influencia do mesmo fenômeno se desenvolvendo em países do primeiro mundo, principalmente na Europa, é muito importante.
A partir dos anos 60, nas manifestações de jovens, estudantes e operários, viam-se surgir ao lado das bandeiras vermelhas a bandeira negra, o sinal de reunião dos anarquistas. E o anarquismo, freqüentemente adulterado e desconhecido, passa bruscamente para a atualidade em maio de 1968, num dos mais importantes acontecimentos da história da França, depois da Comuna de Paris. Fato que até hoje é objeto de estudos.
A revolta de Maio de 1968, surpreendendo todos, mesmo os mais sofisticados teóricos marxistas, situacionistas e até alguns, anarquistas, provocando a indignação dos bem-pensantes defensores da obediência e da hierarquia e assombrando aqueles que acreditavam que o anarquismo estava para sempre sepultado, fez nascer em muitos o desejo de se instruir e penetrar no pensamento libertário.
Embora não houvesse um movimento anarquista que pudesse catalisar a revolta, esta deixa marcas profundas. Edições de Bakunin e outros voltaram a circular, não só na França, mas também em outros países. Apareceram muitos escritos dando ao anarquismo uma visão por vezes distorcida e tendenciosa, como ainda hoje, mas o movimento cresce e seus reflexos chegam a nós.
A revolta de Maio de 68 destruiu o mito do “Estado do Bem Estar”, de que os recursos da moderna sociedade industrial, totalmente voltada para o consumo, pode neutralizar todas as formas de oposição revolucionária. A ânsia de viver e criar. O desejo de liberdade, fundada na solidariedade, em oposição à competição em todos os níveis, lógica do capitalismo, é latente nos seres humanos e pode explodir em circunstancias imprevisíveis. A burocracia e o autoritarismo dos partidos marxistas que vão sendo reconhecidos como o maior entrave à organização livre dos trabalhadores e do povo, já não iludem como antes, e menos ao se travestirem em social-democratas, defensores do capitalismo. O desencanto com os políticos profissionais, com o parlamento, com todas as falsas noções de socialismo estão levando as pessoas preocupadas com os problemas sociais a pensar na alternativa libertária.
Que perspectiva você vê para o anarco-sindicalismo na atualidade?
Acredito que o anarco-sindicalismo tem fundamentos de uma validez incontestável, enquanto instrumento e meio de luta e nunca como um fim em si mesmo. Hoje passa por uma crise de crescimento, após o grande refluxo sofrido depois da Revolução Espanhola. Penso que para superar essa crise muitos conceitos devem ser reformulados. A realidade vai se transformando e as estratégias devem evoluir em conformidade a essa transformação. Basta o exemplo do conceito de operário, que vem desde o século passado e ainda é mantido em estatutos e documentos de sindicatos e da própria A.I.T. (Associação Internacional dos Trabalhadores) e que hoje, face ao surgimento de uma múltipla gama de atividades nos vários setores da produção e serviços, envolvendo técnicos e trabalhadores de diferentes níveis, passa a ser excludente. Restrições previstas em estatutos ao ingresso nas associações ou sindicatos de pessoas no exercício de cargos de níveis mais elevados, relegando a afinidade de idéias a um segundo plano, ainda existem em muitos casos.
Hoje se fazem estudos – A USI (União Sindical Italiana, Secção da A.I.T.) encaminhou proposta de reforma de estatutos para o XVIII Congresso da A.I.T. com alterações nesse sentido – seminários e congressos, como por exemplo: as II Jornadas Internacionais de Debate Libertário, sobre “Novas Tecnologias e Sociedade”, realizada em Barcelona, Espanha, de 2 a 4 de junho de 1989, e cuja temática aborda o assunto, aprofundando a realidade do mundo do trabalho face à automação, tecnologia avançada etc., visando novas estratégias para o anarco-sindicalismo. Penso que sua grande missão é sobretudo pedagógica, como ocorreu nos anos que antecederam à revolução na Espanha, mas com estratégias próprias a cada realidade. O fenônimo de novas tecnologias e sua aplicação industrial, está provocando desde sua origem não só uma profunda reconversão dos meios de produção e serviços, mas também toda uma nova filosofia que afeta a recomposição das classes sociais, o mercado mundial do trabalho como um direito reconhecido na maioria das constituições e inclusive até as liberdades individuais. As repercussões da revolução tecnológica ainda não estão definidas. De maneira cada vez mais acelerada aparecem novos dados que obrigam os estudiosos a reformularem conceitos econômicos, jurídicos, culturais e sociais. O movimento libertário, em geral, considera urgente, para não ficar à margem do processo, que se acelera, fazer um esforço necessário para enfrentar o desafio e fazer a conexão das antigas aspirações do anarquismo com as possibilidades oferecidas pelo desenvolvimento e a radical garantia da liberdade.
Há semelhanças, mas também há diferenças fundamentais entre a América Latina e o terceiro mundo e os países avançados, EUA, Europa, Japão etc. Ou o anarco-sindicalismo se recicla e se adapta às novas realidades ou estagna e regride. O que tem que ser mantido intacto é o princípio de ação direta e jamais participar de partidos políticos ou de órgãos estatais.
Os pensadores anarquistas contemporâneos, como por exemplo Murray Bookchin, quase não falam de anarco-sindicalismo. O que você acha disso?
Murray Bookchin, entre outros pensadores anarquistas modernos, não priorizam o anarco-sindicalismo, penso eu, por vários razões; a história nos mostra até que extremos a burocratização e o autoritarismo atingiram as organizações sindicais, e até organizações anarco-sindicalistas, quando perdem conteúdo libertário, como ocorreu com a CGT Francesa, uma grande força que acabou se burocratizando e depois degenerou por influência marxista após a Revolução Russa. Basta ler Historie du Mouvement Ouvrier em France, Jean Montreuil, Edições Aubier, Paris, 1947.
Bukchin, que defende com força idéias espontaneístas, a variabilidade, a riqueza das diferenças, a libertação da criatividade na diversidade, acreditando nas relações harmoniosas sem idéias preconcebidas, valorizando muito as possibilidades dos grupos de afinidade, voltado para o estudo dos grandes movimentos da atualidade como o ecologista, o pacifista e outros que se constituem em forças contra o Estado e o autoritarismo, não se preocupa com o anarco-sindicalismo atual, embora, como acontece com outros pensadores, seja convidado a participar de seminários e jornadas internacionais onde não se deixa e discutir a vigência do anarco-sindicalismo.
É antológico o confronto entre o Anarquismo e a Igreja. Atualmente, como os anarquistas analisam as posições da chamada Igreja Progressista?
A histórica atitude anticlerical do movimento anarquista, justificada pela posição reacionária e hipócrita da Igreja, defensora e ela mesma usufrutuária dos privilégios e da mais vil injustiça, não impede um exame desapaixonado da ação desses setores da Igreja no terceiro mundo quando se confronta com o poder constituído em defesa dos oprimidos. Recebemos materiais de diversos organismos desse setor da igreja onde se fala de socialismo libertário e de autogestão. Conhecemos sacerdotes que se dizem adeptos das idéias libertárias e contestam a hierarquia da Igreja – estranhos caminhos que colocam católicos e anarquistas com os mesmos objetivos, como o Movimento Católico Libertário dos EUA Sabemos dos padres que morrem no apoio à luta dos “Sem-Terra” e dos posseiros, na batalha contra o terror do latifúndio no Brasil. Também sabemos do ódio profundo manifestado pelos setores conservadores da Igreja contra esses setores mais radicais da Teologia da Libertação, e considero, sob pena de cair num dogmatismo esterilizante, que não devemos combater aqueles que em outras frentes, lutam contra a injustiça, a violência do Estado e a iniqüidade do sistema capitalista. Isto sempre sem perder o senso crítico em relação àqueles que usam de todos os meios para a tomada do poder e ainda não esquecendo as palavras de Umberto Eco, quando diz que “a Igreja sempre teve duas faces: uma progressista e uma conservadora, estando aí um dos segredos de sua perenidade”.
Hoje, os anarquistas, ao combaterem a religião, combatem a instituição, o poder político da mesma, e não o impulso religioso, que ao ser combatido de forma totalitária, acaba por ser transferido, na deificação da figura do líder, como Marx, - hoje o marxismo não passa de uma religião dogmática – Lênin, Stalin etc. ou o próprio Estado na abstração do “Grande Irmão”, de George Orwell. Herbert Read, em seu livro “Anarquia e Ordem” trata com muita propriedade do problema da religião nas sociedades humanas e que os anarquistas não podem desconhecer e nem tratar de forma dogmática.
Você acha que o anarquismo está na moda ou a credibilidade do Estado começa a ruir?
O Estado atingiu tal hipertrofia, penetra, coarta, limita, constrange, sufoca e esmaga de tal maneira a vida dos indivíduos, que, hoje, amplos setores da sociedade se esforçam em opor limites à sua expansão. De fato, a credibilidade no Estado, em que pese a alienação de imensas camadas da população, está em franco declínio. O agravamento de problemas insolúveis nas sociedades fundadas na instituição do Estado, tanto de capitalismo estatal, como os países ditos “socialistas”, está levando ao descrédito cada vez mais acentuado do papel do Estado. Cabe a nós anarquistas, apontar caminhos alternativos que levem à autogestão social.
Você teria críticas ao movimento anarquista atual?
O movimento anarquista, em franco desenvolvimento na atualidade, como não poderia deixar de ser, está sujeito ao aparecimento de grupos e indivíduos que por desinformação assumem posições equívocas que descaracterizam a autêntica imagem do anarquismo. Muita gente está usando símbolos, chegam a promover atos públicos, defendem algumas posições anarquistas mas também cometem distorções lamentáveis. Em certos círculos, dizer-se anarquista, hoje, dá status de inteligência e prefigura um certo modismo. Mas os anarquistas acreditam que a liberdade é a principal condição para o constante aperfeiçoamento social. O fortalecimento harmônico do movimento, fundado nos autênticos princípios libertários se encarregará de escoimar as distorções presentes e futuras.
É possível construir uma sociedade libertária futura servindo-se do instrumental teórico dos pensadores anarquistas clássicos?
Há uma imensa bagagem de idéias positivas na obra dos pensadores anarquistas clássicos, cuja validade me parece permanente. Se encontramos aspectos que se relacionam com a época, os lugares e as circunstancias dos autores e que hoje não teriam atualidade, há uma imensa contribuição em seus escritos que fundamentam os postulados básicos do anarquismo, cuja essências e valor são de uma permanência que se revela nas constantes históricos, invariável na atualidade e perspectiva futura.
Se não nos deixaram modelos de uma sociedade libertária – o que seria uma incongruência – muito nos ensinaram sobre o que não se deve fazer. Penso que não podemos dispensar um sólido conhecimento desse instrumental teórico, pois é na aplicação de seus princípios que serão enfrentadas toda as variáveis possíveis para a construção de uma sociedade libertária.
Jaime, como você interpretaria a tão propagandeada Perestróika?
A estagnação da economia soviética – Abel G. Agamberguian, principal conselheiro da Gorbatchev, declarou que durante o 10º Plano Qüinqüenal (1981 – 1985) a taxa de crescimento foi zero – com a produção diminuindo gradativamente, tornando a URSS dependente de importação de produtos agrícolas, e um imenso atraso da tecnologia industrial em relação ao Ocidente – embora em setores de pesquisa científica, como a espacial, haja avanços – conjugada aos imensos investimentos na indústria bélica (25% da mão-de-obra ativa da URSS é empregada nesse setor), mantendo um exército ativo com mais de dez milhões de efetivos, tudo concorrendo para o declínio da qualidade de vida do povo. Esses fatores explicam a ascensão de Gorbatchev, e a “perestróika” explica a luta surda pela consolidação no poder de seu grupo contra o domínio monolítico dos vetustos burocratas que o antecederam.
As reformas de Gorbatchev visando a modernização da indústria, onde só 35% das empresas empregam computadores, enquanto no Japão e nos EUA a utilização chega a 100%, implica a “glasnost”, quer dizer, a liberdade de informação e abertura política, mas isso não significa abolir o imenso peso da burocracia no sistema econômico-político soviético, embora possa haver algum esforço para reduzi-lo, assim com reduções no brutal orçamento militar, visando melhorar as condições do povo. Tal é a contradição da tão propagandeada “perestróika”.
Você acha que enquanto a Educação continuar nas mãos do Estado, da Igreja, dos poderosos interesses econômicos, existe possibilidade de reverter este quadro de injustiça social?
A luta pela transformação social passa por todas as instâncias da atividade humana. E é evidente que há todo um sistema educacional voltado para a reprodução e perpetuação dos fundamentos da atual sociedade. Um sistema que, aliado aos meios de comunicação de massa, se constitui em uma poderosa arma de coação mental, que ao lado da força armada, sustentam o regime de iniqüidade em que vivemos.
A lógica capitalista e a corrupção das mentes começa na préinfancia, com um ensino fundado na competição, através de prêmios e castigos, que se acentua à medida que os níveis vão se elevando, moldando um comportamento de luta por vantagens sobre os semelhantes. Contra isso os anarquistas opõem a pedagogia libertária, fundada na cooperação, na solidariedade, no desenvolvimento do potencial criativo do ser humano, revertendo o padrão de valores que regem o comportamento. A possibilidade de reverter o quadro será proporcional ao esforço que o movimento anarquista desenvolve em todas as frentes.
O que é ser anarquista?
Ser anarquista é antes de tudo uma atitude ética. Ante a iniqüidade, um ímpeto de justiça leva o anarquista a romper racional e afetivamente com o sistema vigente. Romper com a autoridade é afirmar a própria independência humana. É um ato cabalmente anarquista. Equivale à confiança de se possui o poder e os recursos da sua natureza básica na qual a vida social é possível sem a mão “protetora” do Estado.
Ser anarquista é procurar realizar no quotidiano a plenitude do ato humano, e o ato humano só o é quando livre, fundado na vontade, no conhecimento dos fins e no poder de realizá-lo. Contra todo viciamento do ato humano a luta do anarquista não tem limites.
Ser anarquista é lutar pela liberdade de todos, tendo consciência de que a liberdade dos outros aumenta a própria e não a limita.
Eu poderia dizer muito sobre o que penso do que é ser anarquista...
*Nesta entrevista, publicada na revista Brasil Revolucionário Ano II – Nº 7 – Dezembro/90 – Janeiro/Fevereiro/91, Jaime Cuberos fala do pensamento anarquista, dos desafios enfrentados, dos combates realizados e das perspectivas do anarquismo.